Falar de dinheiro na nossa cultura está geralmente ligado ao lado negro da ambição ou da desigualdade. Igrejas corruptas, política corrupta, ricos sonegadores, malandragem grande e pequena por toda parte pra garantir o lucro próprio. Para alguns que tem grana de sobra, existe até a culpa de se ter tanto enquanto outros quase nada tem. Pra outros, não ter e querer ter pode ser o passo inicial pra uma vida de comparação, insatisfação e preconceito ao tratar como duvidosa a origem de qualquer riqueza ou sucesso acima do que minha inveja considera desejável ao outro mais do que a mim mesmo.
Bom, analisar reações sociais, psicológicas e econômicas do ser humano com o dinheiro eu deixo para os especialistas. E o que dizer do glamour falso que se cria em torno da riqueza e dos luxos que os artistas podem conquistar?
Nos extremos do showbusiness, celebridades com competência artística ganham centenas de milhares pra serem exclusivas e artistas anônimos também competentes (sobre incompetência a gente teria que tratar em outro texto) trabalham de graça em troca de vale-coxinha e ou em troca da única personagem mais famosa e evocada que a própria fama nesse meio – a oportunidade.
E é no discurso inicial da oportunidade que o glamour desaparece e dá lugar à realidade, à mentalidade dos ambiciosos negociadores do showbusiness que solapa a relação profissional no tocante a um fundamento simples de qualquer proposta capitalista de negócio – trabalho versus salário. Se mais alguém tem que tocar no assunto… vamos lá.
Falando de artistas, trabalhar sem remuneração por amor à realização da sua arte chamo de PAIXÃO. Isso é bonito.
Trabalhar com amor pelo ofício da arte tendo remuneração pelo tempo dedicado, chamo DIGNIDADE. Isso é melhor e mais lindo ainda.
Entre paixão e dignidade, ou as duas coisas ao mesmo tempo, cabe a escolha pessoal de cada artista.
O problema é a realidade aqui no Brasil que afronta o ofício e o trabalhador das artes no que se refere à remuneração. Aqui, geralmente vende-se de cima para baixo, leia-se, de quem contrata para o contratado, a mentalidade que remuneração é o mesmo que premiação, gratificação. O que é uma falácia, uma mentira oportuna.
Remuneração é a troca financeira, justa, pela qual o remunerado adquire em moeda a capacidade de escolher o que comprar, pagar, adquirir, investir. Com essa remuneração, pagamos as contas, trocamos as roupas, comemos, ou nos premiamos com lazer. O discurso colonial tupiniquim que mistura as definições de remuneração com “favor”, “gratificação”e “reconhecimento” vem dessa mentalidade vertical e mercenária dos que também discursam amor, paixão, dedicação e abnegação pela arte, enquanto, no final, no fechar das cortinas, o verdadeiro e único aplauso se deve aos artistas, os únicos que de fato poderiam medir a PAIXÃO pela arte, porque esses sim realizam, concretizam e sustentam um espetáculo muitas vezes sem grana alguma, do início ao fim.
Essa PAIXÃO eu sei que muitos artistas valiosíssimos tem e doam generosamente pela arte, independentemente do retorno financeiro. Mas do ponto de vista da remuneração, falta proporcionar DIGNIDADE. E quanto a isso o que estão fazendo os produtores, os facilitadores do showbusines? Estão convencendo pelo velho discurso ou planejando o orçamento pra que seja possível assumir o compromisso de se remunerar atores como assumem o compromisso de pagar técnicos, locações, direitos autoriais e os salários dos executivos? Estão no teatro tentando convencer que apenas participação no lucro da bilheteria é uma gratificação ou uma punição pela capacidade do artista em pescar o bolso do público pelo palco e que isso é o mesmo que remuneração? Ou estão nos cinemas e nas casas noturnas justificando a não-remuneração do artista com o desculpas reais de alto custo de logística de produção e captação de recursos que se justificam por si, mas não legitimam o detrimento do valor e do preço do trabalho do ator, da banda, do técnico e do artista em geral? Ou será porque o discurso da PAIXÃO obviamente não cola tão bem na relação profissional com o fornecedor de alimento, cenografia e energia elétrica como cola no trabalho do ator ou músico? Aliás, diga-se de passagem, músicos, garçons e técnicos, nas relações profissionais, estão bem à frente dos atores pela garantia dos direitos de remuneração.
Lembrando que estou tratando aqui exclusivamente de remuneração, porque no quesito PAIXÃO pela arte, com todas as renúncias que ela envolve, a maior parte de generosos artistas constrói um caminho e luta pela própria DIGNIDADE sem precisar mendigar a ninguém, precisando apenas que aqueles que podem e devem, retribuam com remuneração justa ao trabalho que o artista dá em troca.
Espero não ter sido rude com ninguém nessa reflexão que me toma tempo, raciocínio e compromisso por relações mais justas no chamado “showbusiness”- se é que podemos chamar de business alguns shows que existiriam e existem mais pela pura beleza artística que os artistas emprestam do que pela capacidade do próprio business de exibir um raciocíno e uma atitude que se espera de qualquer business primário quanto à importância do artista como peça fundamental do negócio.
Simon Valadarez, ator e jornalista.